Sonho e Pesadelo
Luis Pisco, Médico, na abertura do 25.º Encontro Nacional de Clínica Geral:
«O nosso futuro está, quer gostemos ou não, quer queiramos ou não, indissociavelmente ligado ao dos outros profissionais que connosco trabalham.»
E o que dizem / pensam / querem os outros profissionais que com eles trabalham?
E disse mais, dirigindo-se à Srª ministra: os médicos de família estão «inseguros» em relação à sua «verdadeira situação no sistema de Saúde», estão «debaixo de pressão», com o futuro a parecer-lhes «cada vez mais incerto».
E como dizem / pensam / querem os outros profissionais que com eles trabalham?
E também lá esteve a Srª Ministra da Saúde que deixou um recado à sua congénere da Educação, pois no seu discurso afirmou que «ao Governo cabe enquadrar, orientar, facilitar», mas são os médicos que devem ser os «autores e actores» dos projectos.
E o que dizem / pensam / querem os outros profissionais da função pública portuguesa?
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Com a devida vénia:
Na sessão de abertura do 25.º Encontro Nacional de Clínica Geral, o presidente eleito da norte-americana WONCA, congénere da APMCG, revelou um sonho que é, simultaneamente, um pesadelo: o de, um dia, serem convidados pelo Governo a «consertar o sistema». Em Portugal, o sonho é uma realidade: a APMCG foi chamada ao poder, através da Unidade de Missão dos Cuidados de Saúde Primários, para fazer a reforma destes, para «consertar o sistema» (e os americanos aguardam com expectativa o resultado); oxalá não venha a transformar-se também em pesadelo.
A inquietação provém de verificarmos que a criação de USF parou e, nas existentes, já alguns se interrogam sobre a bondade de continuar; e de o debate sobre os incentivos financeiros estar gravemente ferido, depois de o SIM ter abandonado as negociações. Até onde poderá a APMCG prosseguir na reforma cuja filosofia inspirou (por oposição à política do então ministro Luís Filipe Pereira, que visava entregar a empresas a gestão dos centros de saúde) se não houver incentivos? A especialidade é maioritariamente constituída por médicos na faixa etária dos 50 anos e superior, a quem se pede que vejam mais doentes e que estejam mais disponíveis – e que deixaram de auferir o pagamento das horas trabalhadas nos SAP nocturnos, na maioria já fechados. Pede-se-lhes, em suma, que trabalhem mais, ganhando o mesmo (e, aqui, pouco sentido faz pensar em incentivos, trata-se de pagar o trabalho suplementar realizado). Nestas circunstâncias, como mobilizar os médicos de família para uma reforma central no programa deste Governo, que a nova ministra da Saúde apoia expressamente e afiança ser para concretizar?
O que se viu no Algarve retrata bem a delicada situação em que se encontra a APMCG. De ano para ano, vai diminuindo o número de profissionais presentes na sessão de abertura do Encontro, de onde estiveram ausentes representantes do SIM e da Ordem dos Médicos. Nem mesmo os que compareciam para discordar apareceram para aquecer o debate. Há um desencanto patente que nos entristece, porque a APMCG merecia mais, no seu 25.º de existência, do que o vulto de um beco sem saída – os tempos não vão de feição para os idealistas, e a reforma, só com estes, porque são poucos, não se fará ou ficará muito aquém das expectativas.
Continuaremos atentos ao desenrolar deste processo, desejando que a APMCG, cuja importante actividade temos seguido desde o início, não venha a ser confrontada com o inêxito de um «conserto» cuja paternidade em boa parte lhe cabe.
TEMPO MEDICINA 1.º CADERNO de 2008.03.10
0812821C22108JPO10T
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A (mu)dança das moscas
Artigo de Teresa Lopes*
Somos invadidos diariamente, nos media, com notícias de problemas na área da Saúde, nomeadamente nas Urgências ou na falta delas, e nas recentes reformas em curso.
Um exemplo da insegurança e revolta latente e patente das populações é o das mortes recentes de dois lactentes em ambulâncias. Segundo o que se pode apurar pelos comunicados, o fecho recente de SAP ou Urgências nas duas localidades não terá interferido no desenlace final, pois em qualquer delas a situação era grave. Contudo, a infeliz coincidência das mortes se terem verificado em ambulâncias a caminho de uma Urgência e as manobras de ressuscitação de uma delas se verificarem à porta de um hospital, onde recentemente foi encerrado o serviço de Urgência, exaltou novamente os ânimos. Nesta altura qualquer explicação, mesmo pertinente, irá ser entendida como mera desculpa.
Uma ideia do pulsar actual dos diversos intervenientes nesta reforma:
Os médicos estão insatisfeitos e muitas vezes com a sensação de estar a trabalhar no arame, sem rede, quer devido à degradação progressiva das condições de trabalho quer à sensação de estarem «ensanduichados» entre a pressão da tutela e dos doentes.
Os doentes estão insatisfeitos e ansiosos, pois assistem ao encerramento de serviços para si essenciais e não entendem as melhorias e os benefícios anunciados com as recentes mudanças.
É necessário referir que, depois de tantos anos de SNS, os doentes ainda não assimilaram as diferenças entre os níveis de cuidados e o seu uso racional, pelo que recorrem, indiscriminadamente, a qualquer deles, consoante a facilidade de acesso e a urgência que atribuem à sua queixa ou pretensão.
Os autarcas, que fizeram as suas promessas em tempo de eleições, estão impotentes para as manter e necessitam de dar resposta à pressão e ansiedade dos seus munícipes. Também para eles é difícil entender todas as razões das recentes mudanças, talvez porque as justificações, actualmente, não fazem um correcto enquadramento de todas as soluções em jogo.
Mas tenho de fazer aqui uma ressalva, visto as soluções não estarem a ser iguais para todos — em princípio, todos autarcas são iguais, mas será que alguns não serão mais iguais do que outros?
Como remédio para todos os problemas detectados devido às reformas e encerramentos recentes, os srs. ministros prometem USF e SIV. Estarão realmente convencidos de que a solução seja tão fácil?
Contudo, a reforma dos cuidados de saúde primários, em que uma das vertentes engloba as USF, e necessária à correcta implementação da reforma das Urgências, tem avançado muito lentamente, tardando a produzir os desejados efeitos.
Sobre as SIV já muito se disse. E as USF, o que trazem de novo para os doentes?
Será que estes já interiorizaram, porque as sentiram, as diferenças como uma mais-valia para as suas necessidades ou para os seus desejos/«direitos»?
Em relação aos médicos, este modelo inovador, em que se privilegia a auto-organização recorrendo-se a profissionais motivados, mesmo que por motivos diferentes, e pela autonomia funcional prometida e há muito desejada, gera um desafio estimulante e, quiçá, compensador.
Mas uma solução, embora considerada boa, estando ainda em embrião e não sendo reprodutível a todos os profissionais, não originará certamente uma mudança consistente e concertada, não constituindo, para já, uma alternativa sustentada e uma resposta a todas as situações agudas.
Publicidade enganosa
Constitui publicidade enganosa que as USF possam dar um médico a todos os portugueses. Até agora, para novos ficheiros sem médico a que as USF já organizadas deram médico de família, fizeram-no essencialmente à custa de novos médicos injectados e deslocados de outros centros de saúde, onde eventualmente ficaram outros doentes sem médico, e não à custa do aumento substancial dos ficheiros já existentes.
As outras unidades de saúde/centros de saúde que, pelo número existente e abrangência de horas de funcionamento, constituem ainda o cerne dos cuidados de saúde primários, continuam sendo os parentes pobres da nova organização — sem a autonomia funcional das USF e dependendo das ARS para qualquer reorganização pretendida, sem grandes possibilidades de melhoramentos nos casos de condições físicas degradadas, visto as verbas disponíveis estarem quase exclusivamente canalizadas para as USF e sua instalação, com constrangimentos na contratação do pessoal necessário a um correcto funcionamento por contenção nos novos contratos.
Mas, e apesar das condições óptimas de organização, o que fazem de diferente as USF?
Uma certeza não pode ser negada. Devido ao seu modo de formação, na generalidade os profissionais estão mais motivados — melhores condições físicas e pessoal em quantidade óptima para um melhor funcionamento e metas a atingir, obrigatoriamente.
Apesar das diferenças, qualquer dos dois tipos de organização presta cuidados globais e continuados a uma população organizada em listas — actividades preventivas, de promoção da saúde e prevenção da doença, cuidados a grupos vulneráveis e de risco, diagnóstico e seguimento de doenças intercorrentes, domicílios, actividades de educação para a saúde, participação em programas de formação pré e pós-graduada e em trabalhos de investigação.
Além das consultas programadas, fazem a gestão de cuidados na doença aguda, não programada.
Segundo a MCSP, em comunicado sobre consulta aberta, os cuidados na doença aguda são prestados na «consulta aberta da USF», que se define como “período de consulta com marcação presencial ou telefónica, só no próprio dia, para garantir a intersubstituição. Poderá não existir como período autónomo se a USF assumir a intersubstituição nos períodos personalizados de consulta individual».
Na prática, as USF têm um misto destas duas soluções — períodos em que os médicos fazem a gestão da doença aguda no seu horário de consulta personalizada e períodos em que, intersubstituindo-se, organizam uma escala em que um dos médicos da unidade atende os casos que ocorrem sem programação prévia.
Qual a diferença?
Então, o que tem de diferente esta organização das chamadas consultas abertas, complementares, de recurso, de apoio, de reforço, etc., dos centros de saúde (CS), em que cada unidade de saúde se organiza para consultar/orientar cada doente sem consulta programada, durante o período de funcionamento do CS, quer na gestão individual do seu horário quer em escala organizada entre todos os médicos?
Consoante as necessidades e especificidades de cada caso, essa consulta estará em funcionamento durante todo o período de funcionamento do CS ou só em parte.
Se bem analisarmos, é muito capaz de ser a mesma coisa…
Até há pouco tempo, nos CS distantes de um serviço de Urgência existiam os SAP — «serviços dos centros de saúde destinados ao atendimento de utentes em situação de urgência e ao seu encaminhamento para os cuidados de saúde secundários, quando necessário». Funcionavam em horário preestabelecido, durante 24 horas ou em período inferior. Tiveram ao longo do tempo e consoante o local, diferentes designações — SAP, SASU, CAP, CATUS, SADU, etc.
Com o tempo, estes serviços foram-se desvirtuando, multiplicaram-se e foram retirando profissionais das suas actividades regulares, pelas horas a disponibilizar para a sua manutenção. Assim, a actividade normal e programada do médico de família foi-se reduzindo, diminuindo a acessibilidade à consulta, o que levou a maior consumismo no SAP, mesmo em situações não urgentes. Apesar de, ao contrário das afirmações do ministro da Saúde, a seguir às noites os médicos continuarem o trabalho normal no seu ficheiro.
No processo de requalificação das Urgências, a comissão técnica de apoio, que não avaliou os SAP por não fazerem parte da rede de Urgências, alertou para «muitas outras situações agudas, ou seja, de aparecimento recente, que não sendo urgências ou emergências, carecem de solução rápida (no mesmo dia ou em horas)», em consulta aberta para situações não programadas, a cargo dos CSP.
Quando ao Ministério da Saúde interessou que os SAP passassem a ter uma conotação negativa e a ser «um serviço perigoso para a saúde ou vida dos doentes», e com a justificação, louvável, não fora demagógica como se verá mais tarde, de recentrar o médico de família no seu ficheiro, iniciou-se o seu encerramento indiscriminado. Mas primeiro houve o cuidado de «criar novos serviços que fizessem a mesma coisa, mas com nome diferente». Assim nasceram as consultas de atendimento complementar com alargamento de horário do CS, após as 20 horas. Mais recentemente nasceu a CAC, consulta de agudos complementar, nos hospitais onde antes havia serviço de Urgência, e não foram contemplados com serviços de Urgência básica, a cargo do CS, com pessoal do CS e organização do mesmo CS.
Tal como os anteriores SAP, até às 20 horas funciona com horas retiradas ao horário normal de cada médico e das 20 às 24 horas e fins-de-semana em horas extraordinárias, com folgas na semana seguinte, o que agrava o funcionamento normal do CS, novamente com diminuição da acessibilidade à consulta programada.
Mas então os SAP não foram encerrados? Alguém me explica, como se eu fosse muito burra, onde está a diferença, para além da poupança nas horas nocturnas?
Sejamos honestos, ou é uma consulta do CS para gestão de doença aguda e deve ser efectuada no CS, com organização e em horário de funcionamento do CS, como o preconizado para as USF, ou não é, pelo que deverá ser efectuada nos serviços de Urgência básica (em instalações do CS, hospital ou outras), podendo, também em complementaridade, ser assegurada com recurso a médicos do CS, mas sempre em horas extraordinárias, sem interferir com o normal funcionamento da consulta regular do ficheiro.
Explicações ambíguas e demagógicas
Contudo era necessário, ao encerrar SAP e Urgências, contentar artificialmente alguns políticos e populações, e daí o recurso a explicações ambíguas e demagógicas e à abertura de serviços aparentemente idênticos mas, claro, com outra designação, não explicando o tipo de consulta/cuidados que, efectivamente, vai ser efectuado. Os doentes ainda não perceberam as regras do jogo e continuam a não saber utilizar os serviços consoante as situações e o seu grau de urgência.
Mas depressa irão constatar que CAC não é o mesmo que SAP e muito menos SUB, que as consultas no seu médico serão mais difíceis e que os recursos médicos são cada vez mais limitados, visto que nos CS onde existem USF, os médicos que as integram não são obrigados ao serviço de CAC ou similar.
Logo aqui vai notar-se a diferença na acessibilidade à consulta, visto os médicos do CS não poderem recusar-se a integrar a escala da CAC…
Num exercício teórico e fazendo futurismo se, por exemplo, no Centro de Saúde de Cantanhede todos os médicos se organizarem em USF, não haverá médicos disponíveis para o CAC e ele terá de encerrar ou, então, haverá necessidade de contratar médicos de outros CS sem USF ou indiferenciados e, então, teremos CAC do CS de Cantanhede, sem profissionais do CS…
Torna-se imperioso que todas as reformas em curso – CSP, Urgências e cuidados continuados, necessárias e urgentes, sejam implementadas harmonicamente, consistentemente, sem decisões avulsas e puramente políticas que desvirtuem os objectivos iniciais.
E não tentemos iludir profissionais e populações com soluções alternativas que mais não são que os mesmos serviços com outras roupagens e, por vezes, menos condições que os anteriores, até pela desmotivação dos profissionais, contrariados, envolvidos.
Estas soluções fazem-me lembrar um artigo que li recentemente sobre moscas.
Fiquei a saber que as moscas são um insecto muito comum em áreas urbanas e rurais, contudo algumas nem sempre adaptadas a processos de urbanização.
Têm diversos nomes e diferentes cores e formas, consoante a sua função — mosca negra dos citrinos, mosca branca, mosca do figo, mosca do chifre, mosca da banana, mosca doméstica, mosca varejeira azul, tsé-tsé, etc.
Mas, no fundo, quase todas elas fazem a mesma coisa — hospedeiras de agentes patogénicos, provocam estragos e doenças nas plantas e animais onde poisam ou picam.
Mas, cuidado, não pensemos que todas são daninhas, pois algumas são benéficas e utilizadas como animais experimentais para estudos genéticos e como agentes de controlo biológico de plantas daninhas ou de insectos pragas.
Aprendemos sempre, pensadores, gestores e intervenientes no terreno, desde que com espírito aberto, e eu aprendi que há moscas úteis. Mas, para não ser tentada a matá-las todas, necessito que me expliquem as diferenças…
Não deixemos que as alterações confirmem o ditado: «Mudam as moscas, mas…»
As recentes substituições de serviços, em que praticamente só o nome muda, enquanto o conteúdo e função se mantêm, fazem-me lembrar as moscas — muda só o nome, mas…
Porquê mudar só por mudar?
Se o anterior era mau, se era prejudicial para um SNS que se quer melhor, mais eficaz, eficiente, humanizado, produtivo, porquê mudar só por mudar, para deixar tudo praticamente igual?
Nenhuma destas medidas avulsas resolve todos os problemas de doença aguda durante as 24 horas por dia e as USF apenas as resolvem durante o seu horário de funcionamento, tal como as outras unidades de saúde, não sendo solução para todos os problemas, como nos querem fazer acreditar.
Enquanto não for criada e bem divulgada uma verdadeira rede de Urgências e de emergência pré-hospitalar, os problemas e revoltas não acabarão.
As mudanças são necessárias, todos o sentimos, governantes, população, profissionais.
Mas também todos sentimos que «para pior já basta assim».
Cabe-nos demonstrar que somos capazes de nos organizar, de lutar pelos nossos direitos e por melhores condições de trabalho, e, a bem dos doentes que servimos, melhorar a nossa acessibilidade e as nossas metas, vencendo a demagogia reinante, não nos deixando desunir, porque a união faz a força…
Não resisto a relembrar a todos os «gestores», nos mais diversos escalões, que os lugares de nomeação são sempre a prazo. Mais cedo ou mais tarde, todos voltam ao local de origem e à situação de obedecer, mesmo a ordens em que não acreditam. Os trabalhadores, esses, permanecem e vêem-nos passar…
Para finalizar, e parafraseando um político respeitado, apetece-me dizer: «Deixem-nos trabalhar…»
*Membro do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos
Subtítulos da responsabilidade da Redacção
TEMPO MEDICINA 1.º CADERNO de 2008.03.10
0812821C20108JMA04A
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Nota: estes artugos que com a devida vénia copiamos do Jornal Tempo Medicina, ficam aqui, não vá o vento fazer-nos esquecer certos pensamentos, vivências, constactações, tristezas, ranger de dentes, etc
1 comentário:
Gostei de ler:)
Bom Domingo.
A LUZ QUE TE DEIXO É DA COR DA MINHA VIDA:)
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