segunda-feira, 26 de março de 2007

Brincando às carreiras

Artigo do Dr. Carlos Costa Almeida*
É ponto assente entre os médicos portugueses já com prática clínica significativa que as carreiras médicas foram um dos pilares do nosso Serviço Nacional de Saúde e condição que permitiu, a par de uma formação médica pré-graduada de qualidade e que não coloca, de maneira nenhuma, mal o nosso país no Mundo ocidental, que os nossos especialistas também possam ombrear com os seus colegas ocidentais, apresentando uma preparação profissional com o mesmo nível de qualidade num país muito mais pobre — e agora a ficar decididamente para trás nesta Europa superalargada, se não se conseguir entretanto aumentar o nosso produto interno bruto, em fase descendente. As carreiras não só permitiram uma formação médica estruturada e contínua, como souberam criar, com naturalidade e insensivelmente, os estímulos necessários e suficientes para a obtenção dessa formação. E, aspecto muito importante, uma formação homogénea, nos grandes hospitais como nos pequenos, quer no Litoral quer no Interior mais recôndito, com uma cobertura nacional de especialistas de qualidade, permitindo que todos os portugueses possam aspirar a ser bem tratados sem terem de se deslocar para longe da sua casa e da sua família, e muito menos para o estrangeiro.
Carreiras médicas acabaram
Mas a verdade é que as carreiras médicas acabaram. Não por decreto ou anúncio na televisão, mas na prática e na decorrência directa do novo regime de gestão hospitalar. Foi este, na verdade, que as matou.
Passou a haver contratações apenas em regime individual de trabalho, e para os médicos que já estavam integrados nas carreiras o grau ou o lugar que nelas ocupavam deixou de contar seja para o que for, a não ser para, prosaicamente e como sinal dos novos tempos que aí estão, de primado do dinheiro na saúde, ganharem de maneira diferente uns dos outros. Mas o sinal mais evidente, e o primeiro a mostrar que as carreiras já estavam condenadas a desaparecer pelo Governo e seus comissários políticos nos hospitais, foi o modo como se passaram a nomear os directores de serviço nos hospitais EPE, e até já antes nalguns hospitais SPA, nestes ao arrepio da lei mas com a cobertura da tutela.
O director de serviço é o encarregado da gestão do serviço, sendo que esta não se pode entender separadamente da actividade clínica, estando forçosamente imbricada com ela, uma vez que não se deve confundir — como alguns, intencionalmente ou por ignorância, pretendem — com uma gestão contabilística ou de guarda-livros. O director de serviço tem, pois, de ser uma referência profissional entre os colegas, o profissional com mais experiência e provas dadas, mais graduado em termos de hierarquia técnico-científica, mais conceituado dentro e fora do serviço e do hospital. É a ele que é confiada a formação pós-graduada, é ele quem escolhe os orientadores de formação, o responsável pelos internos e pela actividade científica e de investigação do grupo de trabalho que o serviço constitui.
Nomeação por «achismo»
Com lógica, a sua escolha, definida na lei, era feita entre os que no serviço tinham atingido o topo da carreira médica, depois de ouvidos todos os outros para se auscultar a sua aceitação. Agora é imposto pelo conselho de administração, independentemente do grau da carreira, sem quaisquer regras ou critérios definidos, a não ser o de possuir o «perfil» adequado. Qual perfil? O que o conselho de administração ache que é o adequado. Porventura, o mesmo que alguém achou também que os seus membros tinham para integrar aquele conselho. É o «achismo», a nova forma de nomeação nos hospitais públicos no nosso país. Que, como se adivinha, abre as portas escancaradas ao «amiguismo» e ao compadrio, os quais, valha a verdade, sempre tentaram marcar presença entre nós. Mas que só agora ficaram institucionalizados.
E as nomeações sucedem-se, de amigos e compadres por amigos e compadres, num «achismo» eventualmente temperado por quezílias pessoais, pequenas ou grandes invejas, desentendimentos e vinganças, e muito, muito oportunismo. E sem falar também do modo deselegante — para dizer o menos — como muitos directores têm sido afastados e substituídos, sem qualquer explicação, manifestação só por si preocupante de desrespeito humano, impunidade e arbitrariedade.
É claro que um dia se irá inevitavelmente regressar ao primado da competência, das provas dadas, da diferenciação técnica, da hierarquia profissional assente em conhecimentos e experiência, e uma onda virá que leve de volta ao local de onde saíram tantos dos novéis gestores de serviço agora achados. Mas não sem que fiquem marcas negativas nos serviços, nos hospitais e na Saúde, e por isso é bom que tudo se registe agora, como memória futura para se poderem mais tarde fazer as correcções adequadas.
Concursos para quê?
Ora, paralelamente a esta situação, continuam nos hospitais EPE os concursos da carreira médica, seja para a graduação em consultor seja para o lugar de chefe de serviço. E para quê?! Concursos numa carreira acabada? Brinca-se às carreiras médicas? Ou desempenha-se um papel imaginário numa realidade desaparecida, como loucos encerrados num manicómio que piedosamente se deixam viver convencidos de que são personagens que já não existem? E que assim vão continuar até morrerem ou, neste caso, até se reformarem, extinguindo-se os seus lugares mal isso aconteça.
Porquê isto?
Com certeza que todos têm direito a progredir na carreira, todos tinham expectativas de o fazer e ficamos contentes que o façam, isso não está em causa. Como também os que tinham atingido o topo tinham expectativas acerca disso, agora goradas. Porque um facto é que a carreira médica acabou, e a progressão nela deixou de ter finalidade, a não ser ganhar mais fazendo exactamente o mesmo.
Se o único objectivo desses concursos agora parece ser o de permitir que alguns médicos passem a ganhar mais, por que razão eles são abertos na lógica governamental vigente de poupar o mais possível na Saúde? A explicação razoável é que se gasta algum dinheiro para procurar manter os médicos de carreira hospitalar entretidos, na ideia de que está, afinal, tudo na mesma, iludindo assim os seus próprios protestos. Porque eles são os que compreendem melhor a importância das carreiras médicas e serão os primeiros a protestar pelo seu desaparecimento. Que já aconteceu, apesar dos concursos a decorrer…
Estes concursos, na verdade, não fazem sentido no momento actual, embora se devam, com certeza, aproveitar. O que não nos devem é fazer esquecer o fim real das carreiras médicas, nem abrandar sequer o movimento de lutar pelo seu ressurgimento, como factor verdadeiramente crucial de qualidade e progresso na Medicina e na Saúde do nosso país, pese embora o que delas o Ministério da Saúde pensa — ou não pensa.
*Presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar
Subtítulos e destaques da responsabilidade da Redacção
transcrito de TM 1.º CADERNO de 2007.03.26 0612371C22607JMA12A

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